domingo, 15 de agosto de 2010

A barrela, o sabão e o cadeirão

Vivia-se ou melhor, sobrevivia-se, no interior profundo da serra de Monchique, estávamos na década de 50. Não foi há tanto tempo assim, apenas pouco mais de meio século. E esta história podia ter-se passado em qualquer outro local do país, especialmente no meio rural.
Nessa época quase não havia dinheiro mas ela sonhava um dia poder ter todas aquelas coisas boas que ouvia falar nos livros, pois sempre gostou muito de ler.
- Oh minha mãe, o que é um sofá ? E uma alcova ? E um telefone ?
- Cala-te filha, sei lá o que é isso, credo ! deixa-te de perguntas parvas e vai mas é trabalhar !
Trabalhava-se do nascer ao por do sol. Tudo ali tinha que ser produzido a partir da natureza. O linho que se plantava para mais tarde fiar e tecer os tecidos dos lençóis e das roupas, a lã para as mantas no rigoroso inverno serrano, os legumes que vinham da horta que tinha que ser regada quase todos os dias, os animais que se criavam para comer num dia de festa ou, no caso das galinhas, quando alguém adoecia. Os ovos sempre podiam ser vendidos na cidade e assim ganhar-se algum dinheiro para a soda cáustica e outros preparados químicos ou para remédios. O pior eram as distâncias. Dali até à cidade eram mais de 20 Km e ela tinha que ir de burro ou melhor, de macho, que o burro era muito lento. Não havia medo de ladrões nem de outros malfeitores. O maior medo era dos lobos. O pai dela já tinha sido atacado por um e não ficou nada bem.
Ela também ia todos os dias à escola, a pé que ficava a uns 10 Km e nunca se sentia cansada. Era muito divertido fazer esse percurso, sozinha ou com os amigos e ela adorava a escola pois sempre adorou aprender coisas novas. Se não fosse a falta de dinheiro que fez com que interrompesse os estudos hoje, muito provavelmente, seria professora mas… é a vida ! Mesmo nos dias de chuva, vento e frio, lá ia ela. A chuva não fazia mal a ninguém e, se fizesse, era só um dia ou pouco mais de febre e lá passava tudo. Que remédio tinha senão passar. Não havia hospital por perto e os médicos eram muito caros. Quando ficava alguém com uma gripe forte, a que chamavam de catarral, havia um remédio santo que todos tomavam: chá da ferrugem. Ao pé das lareiras algumas áreas iam ganhando ferrugem e, depois era só raspar para uma cafeteira com água e ferver. Quase sempre se resolviam as gripes com este remédio caseiro. Para os casos mais graves, compravam-se os tablotes que eram muito eficazes para a febre, assim como as papas de linhaça e água de aivenca. A canja de galinha era o complemento perfeitos destas terapias naturais.
As lareiras também produziam uma matéria prima muito importante na economia de subsistência da altura: a cinza. Isso mesmo, a cinza era usada, vejam só, para branquear o linho, a roupa branca em geral e, por vezes, até para arear as panelas de latão, a que chamavam panelas de arame. Fervendo a cinza com água e depois coando obtinha-se um preparado químico especial para branquear, desinfectar e tirar nódoas que mais tarde foi substituído pela lixívia, hoje tão vulgar e tão economicamente disponível nos nossos supermercados. Depois de lavada com sabão, a roupa era passada pela água fervida de cinza, a que se juntavam pedaços de rosmaninho, alecrim ou alfazema e, acreditem, diz ela, era um cheirinho perfumado tão bom que nem hoje, os mais avançados amaciadores nos conseguem dar. Chamavam-lhe a Barrela. Todas as semanas, pelo menos uma vez, havia barrela lá em casa, naquela pequena aldeia com 60 pessoas que viviam apenas do que a terra lhes dava. Hoje já só restam por ali pouco mais de 3.
O sabão também era uma coisa que ela ajudava a fazer. Juntava-se a banha do porco com soda cáustica, um quilo de cada, e ia a ferver com quatro litros de água. O preparado era então colocado numas formas de madeira e deixava-se solidificar. Saiam dali as barras de sabão, com uma tonalidade esbranquiçada e azulada, que serviam para lavar tudo lá em casa.
Só não lavava a sua grande sede de conhecimento que a levou a perguntar à D. Lurdes, pessoa erudita sua conhecida e vendedora dos livros que ela comprava, o que era uma alcova e um sofá ao que ela lhe explicou que a alcova era um quarto de dormir e o sofá era assim uma espécie de cadeirão. Foi por isso que, um dia, já ela namorava, o pai disse-lhe: - “Oh filha ! agora que já namoras, o pai tem de pensar em comprar-te uma mesinha e quatro cadeirinhas em madeira”. Ao que ela retorquiu prontamente: - "Oh ! meu pai, obrigado mas cadeirinhas não ! Compre-me é um cadeirão !"
Quando hoje lava as suas mãos com sabonete, quando se deita nos seus lençóis lavados ou quando se senta confortavelmente no seu sofá, ela pensa nesta história e agradece pelas coisas boas e pelos momentos tão ricos e maravilhosos que a vida lhe tem proporcionado.
E você ?

1 comentário:

  1. Perfeito oq escreveu, perfeito a maneira como coloca as situações da vida de manneira tão simples e fácil de entender,,,perfeito é Deus que criou vc para que vc conseguisse escrever isto para as outras pessoas , vou ler seu blog inteirooooooooooo

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