sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Crise

Acordei de manhã com o cantar do galo, num sítio muito estranho, numa cama bem confortável e quentinha. O colchão não era de lã nem de camisas de milho mas sim de um material macio, com molas e duro ao mesmo tempo, e ajustava-se perfeitamente ao meu corpo. Quando abri os olhos reparei que o som do galo vinha de uma caixinha pequena com luzes e botões e, mais tarde, vi a minha esposa usá-lo para falar com a sua mãe. Não percebi, na altura, como ela fez isso pois a caixa não tinha fios e, tão pequena, não parecia nada um telefone. Mas afinal era mesmo um telefone, com um som de galo lá dentro.
O sol despontava no horizonte e, apesar do vidro tão grosso, ele entrava pelas janelas semi-fechadas com umas lâminas brancas, parecia madeira.
Numa divisão contígua ao quarto estava uma pequena sala com um espelho e umas bacias brancas. Em todas elas havia um aparelho que deitava água. Soube mais tarde que se chamava torneira e que a água que saía era potável.
Lavei-me e bebi água. Contemplei-a maravilhado na concha da minha mão. Não havia cântaros, nem alguidares nem fontes para ir a pé buscá-la. A água límpida saía da torneira sempre que eu queria. E podia até escolher quente ou fria. Que mundo fascinante seria este ! Percebi mais tarde que uma das bacias brancas servia para fazermos as nossas necessidades, mesmo ali, junto ao quarto de dormir, sem precisar de ir à rua e tudo muito higiénico.
Vi então a minha mulher carregar num botão luminoso vermelho, de um quadro negro rectangular que estava na parede e … milagre … apareciam imagens e sons de todo o lado do mundo. Uma senhora simpática e bonita ia descrevendo essas imagens. Que estranho quadro com tantas cores e músicas a passar que enchiam de alegria o quarto de dormir. Mais tarde soube que lhe chamavam LCD.
Vesti um dos muitos fatos, impecavelmente limpos e bem cheirosos, que estavam pendurados num armário do quarto e, reparei nos sapatos, tão brilhantes que me assentavam como uma luva. Sentia-me um principe assim tão bem vestido e calçado.
Já tinha alguma fome e que bom seria beber um pouco de leite.
- Onde está a vaca aqui nesta casa ? – perguntei. Talvez esteja dentro de outra caixa, tal como o galo - pensei baixinho. A minha esposa achou estranho a pergunta mas respondeu a brincar: - Está no frigorífico ! E apontou na direcção de outra sala toda coberta de cerâmica branca. Fui abrindo as portas dos vários armários e, para grande surpresa minha, havia comida, pratos, tachos, copos e toda uma série de coisas fascinantes para tratar da comida. Um dos armários estava muito frio por dentro. Quando o abri acendeu-se uma luz e lá vi um pacote, com o desenho de uma vaca. Deve ser leite pensei. Provei e … que maravilha era mesmo leite. Assim fresquinho ainda sabe melhor. Só continuo sem saber onde está a vaca mas que importa isso. Elas são muito queridas mas cheiram mal e dão muito trabalho.
Ao lado do leite havia uma infinidade de alimentos frescos. Frutas, legumes, queijo, manteiga. Humm que maravilha. De que quinta terá vindo tudo isto ? E foi durante a noite pois está tudo tão viçoso !
Ali havia outro LCD que passou também a dar imagens e sons quando carreguei no tal botão luminoso do canto inferior direito.
Assustei-me entretanto com dois apitos que soaram quase ao mesmo tempo. O primeiro apito, tipo campainha, vinha de um dos armários onde a minha mulher retirou um copo de leite quase a ferver. O outro, mais sonoro e contínuo, vinha de uma estranha máquina branca. Ela foi logo desligá-la e, surpresa minha, tirou de lá de dentro um pão acabado de fazer. Já me tinha cheirado a pão mas nunca pensei que fosse ali na própria casa que ele se estivesse a fazer ! E sozinho ! Dentro de uma máquina !
Mais tarde, enquanto ia sentado ao lado da minha esposa, tão bem vestida, pintada, penteada e cheirosa, dentro de uma outra máquina metálica, confortável e com rodas, a que chamavam carro, onde viajávamos a grande velocidade, sem cavalos a puxar, ainda a pensar no delicioso pão quente com manteiga que tive o prazer de saborear uns minutos antes, perguntei-lhe:
- Onde vamos ?
E ela respondeu:
- Hoje estás muito estranho. Nem quisestes trazer o teu carro. Claro que vamos trabalhar.
- Qual trabalho ? Eu tenho trabalho ? E um carro ?
- Claro que sim e podes agradecer a Deus, pois está aí uma crise !
- Crise ? Qual crise ? - pensei eu.

Enfim … pelo que entendo, parece-me que acordei, sem querer, 80 anos depois do meu tempo, num local com tanto conforto e bem estar, comparado com o que eu tive mas ... ao que parece ... dizem que estão agora a passar por uma crise.